sexta-feira, 18 de setembro de 2020

RESENHA: ENGOLE ESSE CHORO

 POR  JANDIRO ADRIANO KOCH

Escritor e historiador



Não sei se errar, reconhecer o erro e ser desculpado podem ser considerados estágios, mas tenho pensado muito nisso. Acaso sejam etapas, a burla é constante. Quem falha pouco reconhece as mancadas - e acaba absolvido tacitamente, porque a vida segue. Há quem conceda perdão sem haver desacerto. Por perspectivas diferentes de mundo. As (re)combinações podem ser várias, feito os enxertos para multiplicar a coloração em flores.

De um tempo para cá, no entanto, ando percebendo que se deixou de encarar o homo sapiens como uma criatura passível de constante e inevitável passo em falso (escrevo sobre o indivíduo que se equivoca, não sobre quem entra em círculo vicioso contando com o perdão). Exige-se a perfeição no comportamento, no conhecimento, na linguagem, idealização que mune os confrontantes da bala trocada – dos que se pensam certos, padrão, modelo e molde. Nessa disputa de “razão”, tanto endeusar quanto endemoniar vem retirando a condição de humanidade dos sujeitos, retroalimentando ressentimentos.

Fugindo desse faroeste nonsense - da internet impiedosa, lacrativa e sensacionalista -, acabo sempre nos livros, que exigem concentração e delonga, dois hábeis guerreiros contra os tribunais de exceção formados na pressa do mundo moderno. O mais recente foi Engole esse choro, da Laura Peixoto (Libélula Editorial, 2020).

Pensar em literatura local é entender sua restrição geográfica, peculiaridade de terminologias, temáticas – e concentração de público. Esse tomo tem dessas fronteiras, algumas mais e outras menos demarcadas. Antes intencionais do que acidentais – opção por série de fatores. Um desses, talvez, seja a necessidade de diálogo minimamente honesto intelectualmente com os “seus”, um “pôr na mesa” que, em relação a essa abordagem, é mais feito no grande âmbito – porque no espaço de convivência exige um tête-a-tête – situação em que o ímpeto dos guerreiros de gibi e vídeogames se esvai.




Lacônia do Sul, o município em que a narrativa acontece, obviamente é a alegoria de uma cidade do Vale do Taquari. Identificável já no prefácio assinado por Ismael Caneppele. Nesse campo pseudoficto, couberam entrevistas orais, memória pessoal e pesquisas em jornais, que conformam o corpo, a carne e os ossos. A ficção, nesse corpus, funciona como as juntas e a cartilagem para um andar sem ruído, sem dor e/ou muletas.

O recorte temporal é de 1970 a 2019. Os setenta marcados por censura do Estado, mas, também, por falta de internet, e por uma moral diferente para diversas coisas, o que fomenta um saudosismo confuso em muitos. Famílias conseguiam guardar seus segredos, desde aqueles que, hoje, são passíveis de graça até aqueles em que a desgraça foi consequente. A unha do pé encravada não aparecia em praça pública para o grande julgamento. Os jornais e as rádios controlavam o que se deveria saber. O fuxico sempre existiu, claro.

Num passado recente, os personagens são acompanhados pela falibilidade, condição imanente. Dona Belinha, avó de Eleonora, assinalando suas limitações, alerta a neta, que a estava enchendo de perguntas: ‘[...] fique sabendo que a imaginação é a arte de combinar memórias. Não me cobre verdades absolutas.” Belinha não queria o peso da sentença. Volto, por isso, ao introito deste protoensaio: Distantes no tempo, para o leitor, as figuras que desfilam diante dos olhos tornam-se merecedoras de empatia por representarem, como diria Nelson Rodrigues, a vida como ela é (ou como foi). De fora, a gente se torna cônscio da imperfeição e da inevitabilidade do erro na vida, mesmo que essa lucidez seja, infelizmente, estado efêmero.

Separado o erro comum, a Justiça é reservada para o crime. Essa divisão, volto a pontuar, vem se perdendo na internet. Evidentemente, à época dos fatos, no livro de Laura, a Justiça costurava três camadas de tecido na venda. Por isso esse poder ressurge, no escrito, mais como reclamado. Onde estava? Nesse quesito, a escritora avança mais do que os historiadores locais, que ainda não se debruçaram com vontade sobre esse período na história regional. Engole esse choro expande lembranças de terceiros e (auto)ficcionaliza  para dar conta dessa lacuna, gestação e parto de perfis esfumados pela metáfora.




Como o livro será recebido? Há um estoque de verniz nas moradias de Lacônia do Sul. Que é utilizado generosamente no parquet. É nesse pavimento que os moradores andam todos os dias. É esse chão que observam, enquanto tomam chimarrão, e sobre o qual comentam as visitas quando tornam às suas residências. Por isso os laconienses buscam o brilho. Enquanto o verniz dá conta da superfície, correm a varrer, todos os dias, o cocô dos cupins, que carcomem por dentro. É esse ambiente que o livro retratou, o mesmo em que entrará. 

Última página virada, voltei à internet na vã esperança de que as pessoas já estariam separando tropeços daquilo que deve ser cobrado com seriedade. Tudo na mesma. Há esperança? Talvez nos livros. A morosidade na leitura pede desdenho da rapidez exigida pelo Instagram, Twitter e Facebook. Ler de forma não fragmentada é um exercício excelente. Assim como redigir deve ter sido, porque Laura contou, em uma live, ter levado nove anos para entregar o resultado para a editora.

Foi o título que escolhi nesse agosto medonho até para quem desdenha crendice. E conferiu leveza. Mesmo que possa parecer pesado, pelo que apresentei acima (o que é mero recorte reflexivo, cada qual vai entender à sua forma e pode fazer as relações que lhe aprouver), está longe disso. O bom humor com que a autora discorre sobre os tipos humanos, especialmente os trôpegos, é notório para quem já leu outros de seus trabalhos. Esse me serviu, entre outras coisas, para abrir os olhos para o que importa (sem pieguice) – algo que está tão distante do que nos faz gastar a energia e a paciência nas redes sociais. Logo vou esquecer. Aí cato outro livro. Recomendo.