POR JANDIRO ADRIANO KOCH
Escritor e historiador
Não sei se errar, reconhecer o erro e ser desculpado podem
ser considerados estágios, mas tenho pensado muito nisso. Acaso sejam etapas, a
burla é constante. Quem falha pouco reconhece as mancadas - e acaba absolvido
tacitamente, porque a vida segue. Há quem conceda perdão sem haver desacerto. Por
perspectivas diferentes de mundo. As (re)combinações podem ser várias, feito os
enxertos para multiplicar a coloração em flores.
De um tempo para cá, no entanto, ando percebendo que se
deixou de encarar o homo sapiens como uma criatura passível de constante e
inevitável passo em falso (escrevo sobre o indivíduo que se equivoca, não sobre
quem entra em círculo vicioso contando com o perdão). Exige-se a perfeição no
comportamento, no conhecimento, na linguagem, idealização que mune os confrontantes
da bala trocada – dos que se pensam certos, padrão, modelo e molde. Nessa
disputa de “razão”, tanto endeusar quanto endemoniar vem retirando a condição
de humanidade dos sujeitos, retroalimentando ressentimentos.
Fugindo desse faroeste nonsense - da internet impiedosa,
lacrativa e sensacionalista -, acabo sempre nos livros, que exigem concentração
e delonga, dois hábeis guerreiros contra os tribunais de exceção formados na
pressa do mundo moderno. O mais recente foi Engole esse choro, da Laura Peixoto
(Libélula Editorial, 2020).
Pensar em literatura local é entender sua restrição geográfica,
peculiaridade de terminologias, temáticas – e concentração de público. Esse tomo
tem dessas fronteiras, algumas mais e outras menos demarcadas. Antes
intencionais do que acidentais – opção por série de fatores. Um desses, talvez,
seja a necessidade de diálogo minimamente honesto intelectualmente com os
“seus”, um “pôr na mesa” que, em relação a essa abordagem, é mais feito no
grande âmbito – porque no espaço de convivência exige um tête-a-tête – situação
em que o ímpeto dos guerreiros de gibi e vídeogames se esvai.
Lacônia do Sul, o município em que a narrativa acontece,
obviamente é a alegoria de uma cidade do Vale do Taquari. Identificável já no
prefácio assinado por Ismael Caneppele. Nesse campo pseudoficto, couberam
entrevistas orais, memória pessoal e pesquisas em jornais, que conformam o
corpo, a carne e os ossos. A ficção, nesse corpus, funciona como as juntas e a
cartilagem para um andar sem ruído, sem dor e/ou muletas.
O recorte temporal é de 1970 a 2019. Os setenta marcados por
censura do Estado, mas, também, por falta de internet, e por uma moral
diferente para diversas coisas, o que fomenta um saudosismo confuso em muitos. Famílias
conseguiam guardar seus segredos, desde aqueles que, hoje, são passíveis de
graça até aqueles em que a desgraça foi consequente. A unha do pé encravada não
aparecia em praça pública para o grande julgamento. Os jornais e as rádios
controlavam o que se deveria saber. O fuxico sempre existiu, claro.
Num passado recente, os personagens são acompanhados pela
falibilidade, condição imanente. Dona Belinha, avó de Eleonora, assinalando suas
limitações, alerta a neta, que a estava enchendo de perguntas: ‘[...] fique
sabendo que a imaginação é a arte de combinar memórias. Não me cobre verdades
absolutas.” Belinha não queria o peso da sentença. Volto, por isso, ao introito
deste protoensaio: Distantes no tempo, para o leitor, as figuras que desfilam
diante dos olhos tornam-se merecedoras de empatia por representarem, como diria
Nelson Rodrigues, a vida como ela é (ou como foi). De fora, a gente se torna cônscio
da imperfeição e da inevitabilidade do erro na vida, mesmo que essa lucidez
seja, infelizmente, estado efêmero.
Separado o erro comum, a Justiça é reservada para o crime. Essa divisão, volto a pontuar, vem se perdendo na internet. Evidentemente, à época dos fatos, no livro de Laura, a Justiça costurava três camadas de tecido na venda. Por isso esse poder ressurge, no escrito, mais como reclamado. Onde estava? Nesse quesito, a escritora avança mais do que os historiadores locais, que ainda não se debruçaram com vontade sobre esse período na história regional. Engole esse choro expande lembranças de terceiros e (auto)ficcionaliza para dar conta dessa lacuna, gestação e parto de perfis esfumados pela metáfora.
Última página virada, voltei à internet na vã esperança de
que as pessoas já estariam separando tropeços daquilo que deve ser cobrado com
seriedade. Tudo na mesma. Há esperança? Talvez nos livros. A morosidade na
leitura pede desdenho da rapidez exigida pelo Instagram, Twitter e Facebook.
Ler de forma não fragmentada é um exercício excelente. Assim como redigir deve
ter sido, porque Laura contou, em uma live, ter levado nove anos para entregar
o resultado para a editora.
Foi o título que escolhi nesse agosto medonho até para quem
desdenha crendice. E conferiu leveza. Mesmo que possa parecer pesado, pelo que
apresentei acima (o que é mero recorte reflexivo, cada qual vai entender à sua
forma e pode fazer as relações que lhe aprouver), está longe disso. O bom humor
com que a autora discorre sobre os tipos humanos, especialmente os trôpegos, é notório
para quem já leu outros de seus trabalhos. Esse me serviu, entre outras coisas,
para abrir os olhos para o que importa (sem pieguice) – algo que está tão distante
do que nos faz gastar a energia e a paciência nas redes sociais. Logo vou
esquecer. Aí cato outro livro. Recomendo.