POR TIAGO BALD
"Ninguém pode ser o que é nessa cidade". Essa frase que está lá na página 117, dita pela personagem Belinha - avó da protagonista Eleonora -, parece de alguma forma resumir tudo aquilo que se lê no imperdível Engole Esse Choro, mais recente lançamento da escritora Laura Peixoto. Publicado pela editora Libélula, o livro é muita coisa: novela familiar, romance de formação, narrativa ficcional que carrega nas tintas de realidade. Mas é, especialmente, uma obra que desnovela a hipocrisia que insiste em escapulir pelas frestas de uma sociedade pródiga em apontar dedos, mas incapaz de olhar para si própria com com o mesmo espírito crítico.
Arremessados que somos para o suarento (e pestilento) ano de 1974, na provinciana Lacônia do Sul, vemos ecoar nessa pequena e fictícia cidade - tão parecida com outras tantas que vemos por aí -, a opressão da Ditadura Militar que se avizinha, em um contexto de grande tensão político social.
Ao mesmo tempo, alheios a tudo, os laconienses vivem seu idílio particular em meio a festas, corridas, jogos no clube e escolhas da Rainha da Paróquia, se mantendo ocupados também em atividades comezinhas, seja o tricô, o jantar e as roupas que as crianças usarão no desfile.
De alguma forma, Laura transfere para o passado, um tempo que segue sendo o nosso: de alienação, de preconceitos, de desrespeito às diferenças e até de incapacidade de diálogo. Em cada escândalo que vai sequencialmente sendo revelado nos curtos capítulos, um universo de farsa, em que figuras tão dissimuladas quanto caricaturais, transforma a realidade apenas nisso: o real.
Do padre que tinha duas amantes ao filho do empresário que se
descobre gay, passando ainda pelos homens casados que frequentavam o
bordel local, os moradores da Lacônia do Sul nada mais são do que o retrato
fiel daquilo que, atualmente, aprendemos na marra a aceitar como o
"cidadão de bem". Aquela figura que não falta à missa de domingo pela
manhã, que se orgulha de cantar o Hino Nacional e que acredita que a moral e os
bons costumes possam estar sendo quebrados por figuras subversivas diversas -
seja o colega de aula cabeludo e que talvez fume maconha, seja a professora de
artes, empenhada em fazer a turma pensar, sair da alienação.
Em entrevista à Rádio Independente, Laura afirmou que o
livro é uma "ficção bem ficcionada, com uns 40% de verdade". Mas pra
quem cresceu em Lajeado, não é difícil encontrar paralelos nos locais
descritos, que mesclam localidades reais - como o Rio Taquary (ainda que
grafado com "y") e o cachorrão do Carmelito -, com espaços fictícios,
que podem ir de prosaicas barbearias e botecos, até suntuosas igrejas. Sobre as
figuras envolvidas na novela entrecortada por fluxos de consciência de uma
pessoa que parece estar no hospital - olhando para o passado ao mesmo tempo em
que tenta lidar com o remorso -, é difícil saber o que é real ou não. Laura
levou nove anos para escrever a obra, que saiu da gaveta em tempos de
bolsonarismo, de militarismo de intolerância e de ódio. Décadas após os Anos de
Chumbo, o patriarcalismo, o machismo e a misoginia parecem ter, literalmente,
saído do armário, legitimados pela política beligerante vaticinada pelo
extremismo de direita.
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