quinta-feira, 17 de setembro de 2020

ENGOLE ESSE CHORO


Apesar da triste pandemia que  enterrou mais de 134 mil cidadãos brasileiros, dia 11 de agosto lancei -  online - o livro "Engole esse choro", pela  Libélula Editoral - super recomendo -  que ganhou um lindo  prefácio do escritor Ismael Caneppele.

Como uma roda-gigante no qual as pessoas entram e saem de seus vagões enferrujados, o livro também dá "voltas"  na sua narrativa e aborda as percepções de uma menina de 12 anos sobre sua cidade no ano de 1974.  Traz as memórias de uma avó, a repressão política e sexual, cartas que revelam o machismo jovem da época, enfim, a hipocrisia  e as consequências da censura familiar. 

De gênero literário novela, disponível na Cometa-Livraria e Papelaria, em Lajeado.


Em Estrela, disponível na Biblioteca Pública!


ESSE CHORO: DO QUE VAI GOELA ABAIXO OU

DAS DIFICULDADES DE SE DEGLUTIR DITADORES.

 

Gabriela Milani Leal

 

Nota introdutória

Engole esse choro (2020) é um romance de autoria da escritora e jornalista Laura Peixoto. Como se fosse uma matrioska, o brinquedo conhecido como boneca russa, o enredo traz a história de uma menina, de uma família, de uma cidade, de um país, de uma época. De certo modo, todos compartilham o mesmo sofrimento: à sua maneira, cada qual é obrigado a engolir seu choro, a lidar com seu drama.

É por meio do olhar de Eleonora, uma menina de doze anos, que podemos acompanhar os pormenores da vida na família Moraes, o cotidiano da cidade de Lacônia do Sul, a ditadura militar brasileira e um espírito de muita repressão, autoritarismo e a permanente sensação de extravio por não poder ser quem se é. Sem permissão para sentir, sem autorização para elaborar qualquer trauma, o caminho é sempre o mesmo: goela abaixo. As únicas saídas possíveis parecem ser a adequação em relação ao absurdo ou, então, a doença.






Este ensaio pretende mostrar o caráter fragmentado e velado da repressão promovida pelo governo militar na década de setenta, evidenciando que esse véu muitas vezes se assemelha mais a olhos fechados do que a algo encoberto de fato. As narrativas dos anos de chumbo ambientadas em grandes centros diferem muito deste romance, que se passa numa cidade do interior. Num lugar onde praticamente todos se conhecem, é na intriga e na intimidade que corre esse veio tóxico. O combate do Estado não é contra subversivos de fato, mas antes em favor de brios e de jogos de poder: um manda; o outro, engole o choro – ninguém elabora o trauma.

 

A noite mais linda do mundo

O romance tem como cenário a cidade fictícia de Lacônia do Sul e está divido em quatro partes, numa alusão às estações do ano, marcando a temporalidade da narrativa: Tempo de Cerração, Tempo de Geada, Tempo de Floração e Tempo de Estio.

Narrado em terceira pessoa, o livro se passa no ano de 1974, com inserções em primeira pessoa no ano de 2018 (Eleonora) e de 2019 (neta de Eleonora). Temos também inserções de cartas. Juarez, um rapaz que faz intercâmbio pelo Rotary nos Estados Unidos, morto num acidente aéreo, se corresponde com Plínio. O jovem fala, basicamente, de sexo, drogas e rock and roll, e diz ter vontade de voltar logo para casa: “Não sei se aí tá bom ou não, todos falam que tá tudo uma merda. Mas é dessa merda que os laconienses gostam” (PEIXOTO, 2020, p.98).

Frei Rodriguez, por sua vez, se corresponde com Eleonora. O livro começa com um diálogo entre os dois, antes mesmo da primeira parte do livro (Tempo de Cerração), na sala de catequese do Ginasial.  A menina está chorando quando o frei Rodriguez diz meio em espanhol, meio em português: “Em Lacônia do Sul, Eleonora, se vive un silêncio silenciado. Um día usted conta sobre isso. Su memoria, su historia!” (PEIXOTO, 2020, p.11).

O leitor fica sem saber qual era o motivo do choro da menina naquele momento, mas ao longo do livro vamos compreendendo o que é esse silêncio silenciado, essa dor de não poder ser quem se é e da impossibilidade de sequer chorar por isso. A expressão “engole esse choro” aparece em diversos momentos do romance. O único choro que parece ser acolhido é esse primeiro, que vem com a promessa de um dia poder contar essa história silenciada. Esse choro da menina Eleonora reverbera no silêncio silenciado dos brasileiros que atravessam os anos de chumbo, esse trauma subjetivo para alguns e social para todos.

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Simplesmente esquecer uma experiência traumática não é possível, visto que “é próprio da experiência traumática essa impossibilidade do esquecimento” (GAGNEBIN, 2006, p.99). Isso significa que, por mais haja uma vontade de esquecer, existe uma parte da sociedade que foi atravessada diretamente pelo trauma e que precisa narrá-lo. Isso porque “O trauma é a ferida aberta na alma, ou no corpo, por acontecimentos violentos, recalcados ou não, mas que não conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular sob a forma de palavra, pelo sujeito” (GAGNEBIN, 2006, p.110).

Quando das inserções de 2018, sabemos que Eleonora está numa clínica e que apresenta confusão mental. Apesar disso, ela está escrevendo um livro – esse que lemos, narrado em terceira pessoa e que se passa em 1974? Talvez. Em 2019, a neta de Eleonora encontra Miloca no velório da avó. A velha entrega a ela, então, uma caixa de sapatos – o livro que estava sendo escrito por Eleonora, junto com as cartas? Talvez. Esse é um romance que preserva as lacunas e que fala muito de ciclos.

A confusão mental de Eleonora é sintoma da esquizofrenia. É frequente, nos romances que tratam das atrocidades cometidas durante a ditadura militar, personagens que tenham doenças, especialmente mal de alzheimer. Aqui, o que acomete a personagem central é a loucura. Essa recorrência de sintomas pode ser atribuída ao fato de que

As escritas do corpo surgem através de longa habituação, através de armazenamento inconsciente e sob a pressão de violência. Elas compartilham a estabilidade e a inacessibilidade. Dependendo do contexto, serão avaliadas como autênticas, persistentes ou prejudiciais. Quando se trata de descrevê-las, a estrutura material da memória desempenha papel essencial. (ASSMANN, 2011, p.260).

É como se a recordação estivesse em uma espécie de cripta dentro da consciência do sujeito, estabilizada e inacessível, tão intrincada e latente que precisa, de alguma maneira, se manifestar. Daí surge a escrita do corpo, o corpo inscreve em si um sintoma para dizer ao mundo que há algo interior que é inapagável e inalienável. O corpo é suscetível, o corpo é vulnerável. O corpo conhece a sua memória e sabe da sua dor. Seja o corpo físico de uma pessoa, seja o corpo social de um país, é preciso buscar pelo trauma que foi forjado, é preciso olhar para as cicatrizes e elaborar o passado, sob o risco de continuar a fazer sintomas. No corpo físico, pode ser a loucura. No corpo social, pode ser a repetição da violência.

Falar sobre o trauma é importante para que ele fique estabilizado e, consequentemente, possa ser elaborado, afinal, “a língua é o estabilizador mais poderoso das recordações. É muito mais fácil lembrar-se de algo que tenha sido verbalizado do que nunca tenha sido formulado na linguagem natural” (ASSMANN, 2011, p.268). Ocorre que a palavra, assim como o choro, estava interditada. Vigorava a censura na sociedade e na subjetividade dos sujeitos. A própria Eleonora reconhece, num lampejo de lucidez, sua lastimável condição: “Fiquei assim porque engoli muita coisa, inclusive choro” (PEIXOTO, 2020, p.175). No entanto, ela tenta “desengolir” por meio da escrita.

Na tampa da caixa de sapatos entregue por Miloca à neta de Eleonora está escrito: “Umas folhas nascem, e outras caem: assim é a geração de carne e de sangue. Uma morre, outra nasce” (PEIXOTO, 2020, p.182).




 

Não é por acaso que a primeira parte começa justamente numa roda-gigante. Atrevida, a jovem fugiu de casa para poder ir ao parque e foi andar sozinha no brinquedo. “Eleonora gosta de se pôr à prova” (PEIXOTO, 2020, p.13). Lá de cima, ela observa: “Por fim o único edifício da cidade, o Lincoln, de quatro andares e um elevador. Por que alguém inventou de homenagear um presidente americano nessa grota de mundo? Nunca descobriu” (PEIXOTO, 2020, p.16). Enquanto analisa a cidade do alto de cinquenta e cinco metros, Eleonora começa a sentir medo, arrependimento e vergonha, muita vergonha. Chega a vomitar na gaiola da roda-gigante e, assim que consegue sair do brinquedo, corre para casa.

Esse primeiro capítulo diz muito a respeito da personalidade de Eleonora e já é um prenúncio das dificuldades que uma pessoa assim, questionadora e transgressora, vai viver numa cidade como Lacônia do Sul. Apesar da vontade de se pôr à prova e de ir contra as regras, é muito difícil conseguir romper com essa roda-gigante que gira no mesmo lugar há anos. Numa alusão a Drummond e a Torquato Neto, podemos dizer que Eleonora é essa que um anjo torto ou louco muito louco diria para ser gauche na vida ou então para ir desafinar o coro dos contentes. Enquanto isso, “no alto-falante do parque, Odair José cantava A noite mais linda do mundo. Eleonora odiava Odair José” (PEIXOTO, 2020, p.14).

Como pode Odair José falar de momentos felizes entre as luzes de um parque de diversões enquanto pessoas são presas, torturadas, desaparecidas, assassinadas? Que alienação é essa de toda uma cidade que nem uma criança de doze anos se permite? A alienação dos laconienses não é muito diferente da que recai sobre a maioria dos brasileiros. Espíritos mais inquietos tentam subverter a ordem, sejam os militantes contrários ao regime militar, seja Eleonora sozinha à noite na roda-gigante. No fim das contas, o que muitos laconienses querem é mesmo já esquecer o presente. Ou, melhor, não querem nem saber, pois 

está em ação aqui uma forma ardilosa de esquecimento, resultante  do desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narram a si mesmos. Mas esse desapossamento não existe sem uma cumplicidade secreta, que faz do esquecimento um comportamento semipassivo e semi-ativo, como se vê no esquecimento de fuga, expressão de má-fé, e sua estratégia de evitação motivada por uma obscura vontade de não se informar, de não investigar o mal cometido pelo meio que cerca o cidadão, em suma por um querer-não-saber.” (RICOEUR, 2007 p.455).

É esse o caráter velado da repressão promovida pelo governo militar na década de setenta no interior do Rio Grande do Sul: não um acobertamento das ações. Antes, um fechar de olhos dos cidadãos.

Lacônia do Sul

Essa cidade fictícia corresponde à cidade de Lajeado. O nome escolhido pela autora é bastante significativo, pois lembra “lacônico” ou “lacuna”. Seja por um vazio, seja por um caráter breve e conciso, Lacônia do Sul parece ser mesmo um excelente lugar para se  falar (ou não se falar) da ditadura militar. 

A imprecisão e o esquecimento desse período ficam marcados o tempo todo, até mesmo porque “Lacônia do Sul é uma cidade conservadora, racista, preconceituosa e fora da realidade. Nem no ano 2000 vai mudar, porque não tem cultura nem nunca teve” (PEIXOTO, 2020, p.119).

Nessa cidade, a desigualdade social é latente. Quem tem dinheiro vai ao clube, vai à praia. Quem não tem, vive o calor infernal. Quem tem dinheiro, estuda. Quem não tem, vai até onde dá. Isso é como em qualquer outra cidade marcada pela desigualdade capitalista, mas em Lacônia é além: uns saem de carro a passeio para olhar os estragos que a enchente fez na vida de outros. Essa desigualdade é recreativa, é folclórica, é parte do sistema de opressão. Dinheiro e poder sempre estiveram associados. Num grande centro, o conceito de poder é mais amplo do que numa cidade do interior. Numa cidade do interior, as relações entre as pessoas são maiores e mais estreitas, as famílias se conhecem e ser mais um perdido na multidão é tarefa pouco provável. Assim, a regulação da vida alheia também é maior. E “Lacônia não perdoava. Naqueles tempos, os cidadãos eram classificados como do bem (da direita) e do mal (da esquerda, obrigatoriamente). Arena versus MDB” (PEIXOTO, 2020, p.134).

Ora, se o cidadão de bem era apenas aquele que fosse a favor do golpe, quem é que seria capaz de se dizer contrário? Não era fácil e as posições nem sempre são claras. Por exemplo, o que pensam seu Astor e dona Iolanda, pais de Eleonora, a respeito da situação política do País? Não sabemos. Quando os vizinhos precisaram se mudar à noite, “o pai continuou lendo o jornal, o artigo escrito pelo Dr. Ernani, advogado e presidente da Associação Homens de Bem, que conclamava todo cidadão de Lacônia do Sul a apontar os comunistas da cidade” (PEIXOTO, 2020, p.135). Teria sido seu Astor que denunciou o vizinho? Não sabemos. E assim era a vida em Lacônia:

De perto, dias sem propósito nas pequenas cidades próximas da capital, mas não tão distantes que ninguém soubesse dos rumores políticos. E se esses vinham de tão longe, não careciam de explicações. “Imagina o descabimento: ser comunista no interior! Eles querem que todo mundo se posicione nessa cidade? Era só o que faltava mesmo!”, disse Prates. (PEIXOTO, 2020, p.150).


Porque sim e cala a boca

“Minha mãe disse que o seu Domingos não tava escondido no Amazonas. Tava na cadeia.”

“Cala a boca!”, disse Rosineia chutando a canela da irmã.

“Na cadeia por quê?”, interessou-se Eleonora, com a boca ainda cheia de fritura.

“Porque sim. Não tem nada pra gente beber?”

“Cala a boca, Kely!”, disse de novo a mais velha.

“Cala a boca pra não pedir ki-suco ou por causa do seu Domingos?”

“Cala a boca de tudo.”(PEIXOTO, 2020, p.24).

“Porque sim” e “cala a boca”, assim como “engole esse choro” e “mas não era comunista?”, são expressões que podem sintetizar todo o romance ora analisado, bem como o período ao qual ele se refere. Numa cidade como Lacônia do Sul, “fazer a caveira” de alguém poderia ser, literalmente, acabar com a vida da pessoa. Seja por posição política, seja por qualquer outra razão ou intriga, as pessoas poderiam ser presas e, com isso, obrigadas a enfrentar a vergonha e o rechaço da sociedade local.

A repressão em Lacônia do Sul não ocorre contra subversivos de fato. As personagens mais críticas e combativas são Voltaire e Diná, ou seja, um transgressor cabeludo de dezenove anos que agita um pouco na escola e uma professora que 

era uma mestra transgressora. Não só lecionava Artes como também gostava de conversar com os alunos, incentivando-os a abrir os olhos e ouvidos para a vidaNo primeiro dia de aula, ela fez um círculo no chão, no qual os alunos sentaram, lado a lado, para escutar histórias de países independentes, de mártires e de revoluções. (PEIXOTO, 2020, p.107).

A maneira como a ditadura militar perseguiu os indivíduos em Lacônia do Sul demonstra que não era um combate a perigosos comunistas que atentavam contra o regime ou contra a ordem. Antes, era mais uma ferramenta de coerção utilizada deliberadamente por aqueles que estavam no poder. Os relatos são esparsos e fragmentados em razão da própria natureza da perseguição, mas também por conta do interdito social em relação ao assunto, bem como pelo entendimento limitado que Eleonora e as demais crianças tinham, com pouco acesso às informações.

Com a intenção de formar uma unidade, segue abaixo a seleção de algumas personagens que sofreram, de algum modo, nas mãos dos “pedropaulos”, ou seja, os agentes de repressão.


Zuca

Diretora de escola, bastante engajada na educação:

Porque tu sabes que, naquele tempo, os ricos terminavam o primário e seguiam nas freiras, ou no colégio dos padres, e ainda tinham a opção do Germânico. Para nossos alunos pobres não havia ginásio. Com a Zuca, isso mudou. Dali pra frente, quem terminava o primário no Grupo Escolar continuava os estudos no Ginasial de madeira. (PEIXOTO, 2020, p.37)

Um aluno, filho de militar, afrontou uma professora na aula por não querer participar das atividades coletivas. Zuca, a diretora da escola, defendeu as razões da professora, argumentando que as regras valiam para todos. O pai do aluno, então ameaçou a diretora. De fato, dias depois ela precisou entregar o cargo: “Alegaram reforma no ensino, mas todas nós sabíamos que a autoridade do milico superou até a autoridade do secretário de Educação.” (PEIXOTO, 2020, p.39).

Zuca, que sequer era filiada a qualquer partido político, foi denunciada como comunista e fichada no DOPS. Lideranças de Lacônia do Sul escreveram ao então governador do estado incriminando Zuca. “Entre as coisas mais amenas, a carta dizia: mulher perigosa, comunista, fanática, persegue os filhos das pessoas dos outros partidos” (PEIXOTO, 2020, p.40).


Domingos

Domingos foi preso e voltou para a cidade. Depois de uma reunião no Clube Operário, cometeu suicídio, possivelmente por não ter conseguido lidar com a pressão social.

No dia seguinte, o pai leu no jornal uma nota, sem destaque, junto aos classificados: “Conforme escritos que deixou, deduz-se que o motivo do ato desesperado foi seu afastamento temporário do emprego, na Indústria de Óleo”. Dona Iolanda suspirou: “Afastamento... Vergonha da prisão, disseram no instituto”. (PEIXOTO, 2020, p.47)


Teófilo Farina

Trabalhava no escritório de um frigorífico que mandava carnes para São Paulo por meio de uma transportadora que pertencia a um deputado do MDB de Passo Fundo, razão pela qual Teófilo conhecia o político.

Um dia, dois homens armados foram à casa de Teófilo. Sua esposa estava grávida. Os homens mandaram chamar Teófilo, reviraram a casa e o levaram preso. Quando retornou da prisão, sua mulher já tinha parido, mas a criança estava morta. Seu Teófilo passou outros 30 dias na cadeia, mas em Porto Alegre, numa cela com as paredes de reboco esfolado, sem comunicação com a família, na fundura do silêncio. Junto, o filho do seu Lagranha, que entrou arrastado pelos cabelos, e o Bodum, que deixou uma ponta de dedo com um comissário de nome Valdevino. (PEIXOTO, 2020, p.70)


Irmão da Zaida

Preso supostamente por ter fugido do exército, mas, na fala da Zaida, aparecem “eles”, esses “outros” que inventam que o irmão era comunista.

“Minha mãe só chora trancada no quarto.”

“E teu pai?”

“Só fuma e caminha da sala para a área e da área para a despensa.”

“E agora”

“O pai disse que isso só pode ser coisa de vagabundo sem coisa pra fazer em Porto Alegre. Meu irmão não fugiu do Exército. Foi dispensado. Tem asma. O pai vai pedir audiência com o prefeito, vai falar com o delegado e resolver isso logo, logo.”

“Isso o quê?”

“Isso do meu irmão na cadeia. E deles ficarem inventando que o mano é comunista.” (PEIXOTO, 2020, p.73)




Cadáver no Taquary

O corpo de um homem jovem apareceu boiando nas águas do rio. “Tem gente achando que foi suicídio, que se jogou da ponte, mas não pode ser porque veio com as mãos amarradas. Tava muito deformado” (PEIXOTO, 2020, p.79). Uma pessoa diz que o cadáver se parecia com um conhecido seu, mas como ninguém mais falava nada, também calou. No dia seguinte, o diretor da rádio, que sempre apoiou o regime militar, fez um discurso com tom diferente, dizendo que a barra tá pesada, e lascou que tá enojado dos políticos, dos governos que iludem o povo, da miséria que envergonha, da falta de escola para os filhos dos operários e da corrupção que devora o fígado do povo. (PEIXOTO, 2020, p.80)


Essa pequena seleção das vítimas da repressão em Lacônia do Sul evidencia a arbitrariedade absurda que caracterizou a própria repressão – já, por si só, arbitrária –, numa redundância que é,afinal, enlouquecedora e consequência do fato de que as autoridades do país deram carta branca a policiais e militares, muitos deles verdadeiros psicopatas, a fim de eliminar pessoas de forma sistemática, simulando teatrinhos ou descartando os corpos como se fossem animais. (FIGUEIREDO,2017, p.14)



Estamos uma ova

Um dos mais significativos episódios de resistência narrado em Engole esse choro se passa durante o desfile de Sete de Setembro, em comemoração à Independência do Brasil. É uma passagem breve, menos de quatro páginas, mas suficiente para marcar uma pequena insurgência entre os jovens. Durante o desfile, os estudantes carregavam faixas e cartazes com dizeres nacionalistas, aexemplo de “ame-o ou deixe-o” e “estamos contigo, Brasil”. Mas nem toda hegemonia estética e discursiva dava conta de convencer a unanimidade dos laconienses:

Estamos uma ova!, havia dito Plínio quando soube da faixa. Na semana passada, pegaram o seu Lagranha e o prenderam por oito dias, sem comunicação. O senhor sabe algo, pai? E seu Astor devolveu: O que tem a ver o cu com as calças? A mãe, incrédula, repreendeu: Astor, olha as crianças! (PEIXOTO, 2020, p.101)

O pai não admitia – ou apenas não queria admitir para o filho? – a notória relação entre a política vigente e o arbítrio praticado. Talvez por ser simpatizante da ditadura, talvez por ser melhor não ver relação nenhuma com qualquer coisa que pudesse trazer problemas, não sabemos. Ocorre que há entre a comunidade estudantil certa efervescência liderada por Voltaire, que gritava para os colegas trocarem o uniforme. A ideia era que todos vestissem preto e marchassem de luto. Tiras pretas foram amarradas aos instrumentos da banda e, quem não quis vestir preto, pelo menos amarrou o moletom amarelo na cintura, numa provocação mais amena. Alguns também se recusaram a carregar as faixas e os cartazes com os dizeres nacionalistas.

A manifestação não teve muito efeito, pois “os laconienses não entenderam a petulância estudantil. As autoridades no palanque e a maioria dos alunos também não entenderam bulhufas,naqueles dias de aparência democrática” (PEIXOTO, 2020, p.102).

Como consequência, Plínio, Voltaire e mais quatro estudantes tiveram que comparecer à direção da escola para assinar um termo pela desobediência cívica. Mães choraram, pais distribuíram safanões.

 Outra importante passagem de resistência ocorre numa manhã de sábado letivo. A professora Diná anunciou uma aula diferente, pediu que todos sentassem em círculo no chão. “Era tudo tão inusitado que ninguém parecia aguentar de excitação. Então, a professora Diná fez shhhh e disse que a aula daquela manhã seria sobre alienação: O resultado da soma reacionário mais conservadorismo” (PEIXOTO, 2020, p.161).

Narrando uma história que se passava num reino distante, a professora foi criando uma metáfora para o cenário político brasileiro. Pessoas proibidas de pensar, censura, silenciamento, violência, exploração, arbitrariedade e assassinato, todos os componentes vividos durante os anos de chumbo podiam ser vistos naquele reino distante de uma história fictícia que começava com um moleiro cansado que ousou usar sua cabeça para pensar e, que grande perigo, questionar o mundo em que vivia.

Após aquela aula, uma espécie de último ato de resistência da professora que já enfrentava ameaças e cerceamentos por parte do diretor da escola, Diná vai embora – mas, antes, abre bem todas as cortinas da sala.


Nota conclusiva

Os tempos sombrios da ditadura brasileira pairam sobre Lacônia do Sul como uma nuvem alheia, para a qual a maioria dos cidadãos prefere simplesmente não olhar. Num lugar onde ninguém pode ser o que se é, onde vigora uma rígida cultura de cultivar hipocrisias e de engolir choros, é natural que a alienação seja uma doce anestesia para evitar dores e incomodações.

O problema é que nem todo fechar de olhos impede o sujeito de sentir. Como saber se não recairá sobre ele a acusação de comunista? Numa caça às bruxas bastante medieval, a heresia poderia significar ser um subversivo de fato ou, então, simplesmente ser apontado como um subversivo, por mais que a pessoa vivesse em santidade.

Numa cidade pequena, em que a sociedade já reprime o sujeito que ousa questionar as próprias contradições do meio, existe uma implicância da opinião pública sobre a vida privada que é capaz de modular e até mesmo de aniquilar o sujeito – metaforicamente e, em tempos de truculência maior, fisicamente.

Em Engole esse choro, podemos acompanhar a complexidade narrativa das lacunas, dos não-ditos e dos discursos difusos propalados pelos meios oficiais. Como se fosse uma guerra épica do bem contra o mal, qualquer simpatizante da esquerda seria sumariamente jogado à fogueira (ou ao rio Taquary) e condenado ao inferno. Sem poder contar com a indiferença dos grandes centros, ninguém pode ser anônimo, ninguém pode circular despercebido. A vergonha é um forte modulador social e, por vezes, é a bala de prata que dá cabo às criaturas que foram capazes de resistir.

Regimes de exceção mamam nas tetas do arbítrio. Pouco importa se uma pessoa terá que engolir o choro mais subjetivo ou o ditador mais totalitário: deglute-se e pronto, com a ajuda de uns bons copos de melancolia. É preciso engolir, ainda que o sujeito possa enlouquecer.

Esse extravio de si vivido pelo ser na loucura é semelhante ao extravio histórico que vivemos ao não elaborar esse trauma que atravessa a sociedade brasileira. É preciso narrar o horror que foi a ditadura militar brasileira, considerando que

A literatura que tematiza horrores não pode aplacar, acalmar, apaziguar as consciências; ela deve, ao contrário, desconcertar, provocar o mal-estar e a inquietação. É por essa razão que a melancolia dá o tom, o sentimento de derrota predomina, a incompletude solapa as falácias positivistas de explicaçãológica. (FIGUEIREDO, 2022, p.191)

Eleonora morre velha e esquizofrênica depois de uma vida atroz. Sua filha já está morta. Sua neta, que vive longe de Lacônia do Sul, também conhece a sensação de extravio, como se fosse um leve bafejo de loucura na delicada vidraça da existência. No entanto, a neta chora. A herança possível é essa: poder pôr para fora. No final das contas, tanto faz o que tinha dentro da caixa de sapatos. A expressão da dor causada pelo horror está, finalmente, autorizada. A neta chora.


Referências

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural.

Campinas: Editora da Unicamp, 2011;

FIGUEIREDO, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura brasileira. Rio de Janeiro: 7Letras,

2017;

FIGUEIREDO, Eurídice. A nebulosa do (auto)biográfico. Porto Alegre: Zouk, 2022;

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006);

PEIXOTO, Laura. Engole esse choro. Santa Cruz do Sul: LupaGraf, 2020;

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.